Esse foi um editorial publicado pelo jornal "O Estado de São Paulo", escrito por Dora Kramer e publicado no dia 18 de junho de 2008. É interessante, senão triste, notar que, mesmo após quatro anos de escrito, este texto ainda tem muito de verdadeiro...
De mal a pior
Algo de
grave acontece com a sensibilidade dos espíritos quando políticos são acusados
de comandar quadrilhas, a polícia se alia ao bandido e militares trabalham ao
soldo de traficantes, mas as pessoas acham que vai tudo muito bem por que pobre
compra DVD, a Receita arrecada como nunca, o rico continua rindo à toa e o País
sobe ao grau de “bom” para investimento.
Quanto à
demolição dos mais comezinhos valores, a destruição de referências e a extinção
paulatina da segurança, que ameaça não deixar um só brasileiro vivo para contar
a história de tantas maravilhas, tudo isso horroriza, mas não mobiliza.
Há menos de
um mês, a Polícia Federal e o Ministério Público disseram que o ex-governador
Anthony Garotinho estava no topo do esquema criminoso comandado por um ex-chefe
de polícia e atual deputado estadual, e hoje a notícia está esquecida.
Não
impressiona ninguém. A começar pelo governador do Estado mais atingido, ocupado
em semear charme e simpatia. Para Sérgio Cabral Filho, foi como se não tivesse
acontecido, não obstante os acusados convivam com ele no mesmo partido.
Justiça se
faça, não está só na indiferença ao indício mais acachapante já surgido sobre a
promiscuidade entre o poder público e a bandidagem.
O dar de
ombros é generalizado. Deu-se o dito como natural, como se algo daquela
dimensão não contasse com cúmplices em toda parte, vários deles eleitos com o
dinheiro das propinas coletadas pelos delegados.
Mas não era
esse o fundo do poço. Isso fica evidente quando militares se alugam a facções
criminosas e, como parte do trabalho, entregam gente para servir de repasto aos
traficantes na macabra rotina de torturas e assassinatos já incorporada ao
cotidiano dos territórios dominados pelo terror no Rio de Janeiro.
Sim, há
terrorismo compartilhado por agentes do Estado na cidade mais visível do País,
e nossas autoridades continuam reféns de paliativos. Uns mais fracos, outros
mais fortes, mas nenhuma ação ganha o carimbo da urgência urgentíssima
conveniente à situação de óbvia ameaça à segurança nacional.
O
presidente da República lamenta os episódios, mas no geral só comemora a
chegada (dele) ao “paraíso”. Parece achar que olhar o lado podre, e sem votos,
dá azar. Ou talvez, na lógica panfletária, considere esse trabalho da oposição.
É também, mas ela só pode apontar a problemática. A solucionática é tarefa dos
governos, que há anos assistem inertes ao avanço do crime.
Algo os
impede de agir. Fazem planos, prometem projetos conjuntos, visitam experiências
bem-sucedidas, e nada. Sérgio Cabral mesmo é cheio de gás. Manda a polícia
endurecer, de vez em quando exibe como troféus os corpos de meia dúzia de facínoras,
fatura apoio da população nas pesquisas e as atrocidades prosseguem.
O auge da
repercussão da mais recente alcançou Sérgio Cabral na Alemanha. Enquanto eram
enterrados os rapazes arrastados para as mãos dos traficantes do Morro da
Mineira por militares que atuavam clandestinamente em prol de um senador da
República no Morro da Providência, o governador passeava de triciclo em frente
ao portão de Brandenburgo.
Antes de
embarcar, o governador disse umas palavras de repulsa, é verdade. Ontem o
presidente Lula externou “profunda indignação” com o assassinato dos rapazes.
Nenhum dos
dois, no entanto, se sentiu minimamente obrigado a explicar o que faz o
Exército no Morro da Providência, dando guarida à execução de um projeto de reforma
de casas de autoria do senador Marcelo Crivella, candidato predileto do presidente
à prefeitura do Rio.
Muitas
vezes o governador Cabral pediu o reforço das Forças Armadas no combate à
criminalidade. Antes dele, outros governadores tentaram o mesmo. Os militares
sempre se recusaram, sob a alegação de despreparo para ações de polícia e, à
boca pequena, confessavam o temor de que soldados e oficiais pudessem vir a ser
cooptados pelo crime, como ocorre com os policiais.
A despeito
disso, o senador conseguiu assinar um convênio com o Ministério das Cidades
que, sabe-se lá como, pôs os militares no morro. Não no combate ao tráfico, mas
para ajudar um candidato a prefeito filiado ao partido do vice-presidente, a
posar de benfeitor e amealhar votos naquela agradecida comunidade.
Isso é
lícito? O governador sabia? Certamente, senão por exigência legal, pela
convivência leal com Brasília. Falou a respeito do acontecido? Nem uma palavra.
Cabral não
gosta de Crivella, mas, sabe como é, Lula, o grande carreador de verbas para o
Rio, gosta e isso basta para fazê-lo ignorar um fato inédito até ser revelado
por esse episódio: a participação das Forças Armadas na ciranda do
aparelhamento do Estado em prol de afilhados políticos.
Do topo das
instituições mais confiáveis na percepção do público, os militares veem de novo
seu nome misturado a torturas e assassinatos. Em nome do quê? De uma disputa político-eleitoral.
Reles e, sobretudo, vil.
Abraço do Leo!
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